18 de fevereiro de 2012

Carnaval, Negócios e Profanações Normalizadas

O que o carnaval tem a dizer sobre o Brasil? Uma festividade da carne como símbolo internacional de “brasilidade”: profanação normalizada do sagrado. “Paraíso tropical” para turista e celebridade ver. O carnaval brasileiro é supostamente igualitário numa sociedade hierarquizada e autoritária; falsa cordialidade que mascara conflitos e nega “jeitinhos”. O rito do “sabe com quem está falando” o qual implica uma separação radical de posições sociais bem definidas permanece vigente nas ritualizações que invertem papéis durante quatro dias do ano. O pobre vira nobre e a elite posa de povo, ambos desfilam juntos, no entanto, isso revela o sistema social do “cada qual em seu lugar” que gostamos de esconder.
Os sambódromos nada mais são do que espaços de confinamento e de contenção de indesejáveis presos em seu território, mas alimentados por felicidades temporárias. No Rio de Janeiro durante o séc. XIX, as festas populares passaram por várias medidas de contenção da população pobre e de escravo. Mediante o uso de força policial, as expressões populares e os excessos nas ruas somente foram aceitos no momento em que foram limitados em espaços fechados a partir do processo de elitização da festa à moda europeia. Se o carnaval voltou a tomar as ruas, foi a partir do medo das elites que proibiam o povo de sair mascarado para que assim pudessem identificá-lo com maior facilidade através de estratégias de controle sobre a exposição do rosto no espaço público.
Alguns traçam a comparação com a política do pão e circo utilizada pelos imperadores romanos para administrar e acalmar a população com alimento e entretenimento, fazendo com que se esqueçam das dificuldades e a miséria do dia-a-dia e passíveis a tal ponto para que nunca se levantem contra o governo e nem se revoltarem com a falta de emprego exigindo melhores condições de vida. Apesar de considerar bastante válida essa colocação (guardando as devidas especificidades para não se cometer graves anacronismos), os contemporâneos rituais coletivos de inversão da ordem social estão implicados nas atuais políticas de pacificação e ocupação militar verticalizada nas áreas de pobreza aprofundando cada vez mais as desigualdades e as segregações sócio espaciais para atender segurança para uns e monitoramento/policiamento ostensivo para outros, ao mesmo tempo em que regula coexistências no mesmo campo da inclusão-excludente. Portanto, não há avesso entre uniformes, fantasias e alegorias, apenas gestões policiais da vida cotidiana que se deslocam para a gestão dos excessos e descontroles cercados e vigiados por moralismos, hipocrisias e choques de ordem, todos eles se valendo de uma positividade e “simpatia” por parte dos foliões.
Antes, durante e depois do carnaval, ampliam-se as governamentalidades sobre os vivos e mortos, abortos, acidentes de trânsito, transplantes de órgãos, tráfico internacional de mulheres, doenças sexualmente transmissíveis, campanhas puritanas de higienização do sexo, erotismos em marcha, propagandas de moderação para conduzir "consciências" ao rebanho e vários corpos disponíveis ao mercado legal e ilegal. Clubes privados, vendas de ingressos, blocos estruturados com alto investimento do poder público, escolas de samba disciplinarizadas, interesses que beneficiam donos de trios elétricos, lucros de fabricantes de bebidas alcoólicas, altos cachês para apresentação de artistas e músicos, alegrias regadas a prejuízos, descaso público camuflado e grandes negócios no país da desigualdade. Enquanto muitos diariamente cansam ou morrem de tanto esperarem por atendimento médico no corredor do hospital, no carnaval o status quo do bêbado ou do arrastão adquire todo o aparato para entrar em brigas e perpetrar atos de vandalismo ao depredar patrimônios sem se preocupar com a infraestrutura de sua cidade e o conjunto de bens que servem para atender as necessidades coletivas.
Todos são iguais perante os sambas-enredo e passarelas? Ou dimensões distintas de marcadores culturais que disfarçam paz e harmonia? O carnaval dito “democrático” recorrentemente necessita da opressão e borrachada da polícia quando o “moleque” ou a “gente feia” ultrapassa o bloco da “gente bonita” que faz questão de jogar na cara o reconhecimento de seus direitos e privilégios. Cartão-postal que encobre apartheid's e entre outros graves problemas sociais e históricos. O carnaval administra a moralidade e as libertinagens previsíveis e permitidas e vende as imagens e os mitemas da cultura nacional, do “homem cordial”, da ideologia da "democracia racial" e a utopia retrógrada da “cidade maravilhosa” como terra que não existe pecado passando a ideia e o imaginário do jardim idílico.