O que o carnaval tem a
dizer sobre o Brasil? Uma festividade da carne como símbolo internacional de
“brasilidade”: profanação normalizada do sagrado. “Paraíso tropical” para
turista e celebridade ver. O carnaval brasileiro é supostamente igualitário
numa sociedade hierarquizada e autoritária; falsa cordialidade que mascara
conflitos e nega “jeitinhos”. O rito do “sabe com quem está falando” o qual
implica uma separação radical de posições sociais bem definidas permanece
vigente nas ritualizações que invertem papéis durante quatro dias do ano. O
pobre vira nobre e a elite posa de povo, ambos desfilam juntos, no entanto,
isso revela o sistema social do “cada qual em seu lugar” que gostamos de
esconder.
Os sambódromos nada mais
são do que espaços de confinamento e de contenção de indesejáveis presos em seu
território, mas alimentados por felicidades temporárias. No Rio de Janeiro
durante o séc. XIX, as festas populares passaram por várias medidas de
contenção da população pobre e de escravo. Mediante o uso de força policial, as
expressões populares e os excessos nas ruas somente foram aceitos no momento em
que foram limitados em espaços fechados a partir do processo de elitização da
festa à moda europeia. Se o carnaval voltou a tomar as ruas, foi a partir do
medo das elites que proibiam o povo de sair mascarado para que assim pudessem
identificá-lo com maior facilidade através de estratégias de controle sobre a
exposição do rosto no espaço público.
Alguns traçam a
comparação com a política do pão e circo utilizada pelos imperadores romanos
para administrar e acalmar a população com alimento e entretenimento, fazendo
com que se esqueçam das dificuldades e a miséria do dia-a-dia e passíveis a tal
ponto para que nunca se levantem contra o governo e nem se revoltarem com a
falta de emprego exigindo melhores condições de vida. Apesar de considerar
bastante válida essa colocação (guardando as devidas especificidades para não
se cometer graves anacronismos), os contemporâneos rituais coletivos de inversão
da ordem social estão implicados nas atuais políticas de pacificação e ocupação
militar verticalizada nas áreas de pobreza aprofundando cada vez mais as
desigualdades e as segregações sócio espaciais para atender segurança para uns
e monitoramento/policiamento ostensivo para outros, ao mesmo tempo em que
regula coexistências no mesmo campo da inclusão-excludente. Portanto, não há
avesso entre uniformes, fantasias e alegorias, apenas gestões policiais da vida
cotidiana que se deslocam para a gestão dos excessos e descontroles cercados e
vigiados por moralismos, hipocrisias e choques de ordem, todos eles se valendo
de uma positividade e “simpatia” por parte dos foliões.
Antes, durante e depois
do carnaval, ampliam-se as governamentalidades sobre os vivos e mortos,
abortos, acidentes de trânsito, transplantes de órgãos, tráfico internacional
de mulheres, doenças sexualmente transmissíveis, campanhas puritanas de
higienização do sexo, erotismos em marcha, propagandas de moderação para
conduzir "consciências" ao rebanho e vários corpos disponíveis ao
mercado legal e ilegal. Clubes privados, vendas de ingressos, blocos
estruturados com alto investimento do poder público, escolas de samba
disciplinarizadas, interesses que beneficiam donos de trios elétricos, lucros de
fabricantes de bebidas alcoólicas, altos cachês para apresentação de artistas e
músicos, alegrias regadas a prejuízos, descaso público camuflado e grandes
negócios no país da desigualdade. Enquanto muitos diariamente cansam ou morrem
de tanto esperarem por atendimento médico no corredor do hospital, no carnaval o status quo do bêbado ou do
arrastão adquire todo o aparato para entrar em brigas e perpetrar atos de
vandalismo ao depredar patrimônios sem se preocupar com a infraestrutura de sua
cidade e o conjunto de bens que servem para atender as necessidades coletivas.
Todos são iguais perante
os sambas-enredo e passarelas? Ou dimensões distintas de marcadores culturais
que disfarçam paz e harmonia? O carnaval dito “democrático” recorrentemente
necessita da opressão e borrachada da polícia quando o “moleque” ou a “gente
feia” ultrapassa o bloco da “gente bonita” que faz questão de jogar na cara o
reconhecimento de seus direitos e privilégios. Cartão-postal que encobre apartheid's e entre outros
graves problemas sociais e históricos. O carnaval administra a moralidade e as
libertinagens previsíveis e permitidas e vende as imagens e os mitemas da
cultura nacional, do “homem cordial”, da ideologia da "democracia
racial" e a utopia retrógrada da “cidade maravilhosa” como terra que não
existe pecado passando a ideia e o imaginário do jardim idílico.