Dezembro/2010
Na atual conformação das
forças de contestação para as negociações diplomáticas, empreendedoras e
moderadas, a cidadania seletiva que produz a vida nua convive na linha
tênue de cercos colaborativos. Com unidades, assujeitados prestam obediência às
ofensivas de controle quando a segurança policial reforma condutas de uma
subserviência voluntária. Apoiam, consentem, gratificam e aplaudem ocupações e
repressões estatais. A vontade de sujeição oscila em obedecer aos operadores do
tráfico e fazer parcerias às operações de guerra, forças armadas e todo o
aparato policial da razão governamental de Estado.
Nos morros desprovidos de
serviços públicos e políticas sociais efetivas, parcelas de moradores começam a
aceitar noções equivocadas defendidas pelo engodo jornalístico de que o Estado
brasileiro se faz presente na Vila Cruzeiro e no Complexo do Alemão, vindo a
existir simplesmente como uma recuperação do tal "monopólio da
violência". A falaciosa exortação da "retomada das favelas pelo
Estado" desconsidera a historicidade do processo de favelização e
segregação urbana socioespacial, oriundo das desigualdades que o Estado sempre
ignorou. A imprensa ressalta apenas os braços armados do Estado em espaços
segregados. Desse modo, é comum se deparar com posições que associam a miséria
e a pobreza às questões criminais, consenso feito pelas camadas mais
conservadoras da sociedade, principalmente as que criminalizam os pobres
culpabilizando-os por seus sentimentos de medo e insegurança.
As medidas emergenciais
são acionadas a posteriori de serem reconhecidos os
"fracassos" e limites de longa duração do poder soberano no combate à
criminalidade. As prisões colocadas como sistemas "falidos"
corroboram em seus próprios disfuncionamentos a gestão de novos ilegalismos que
desdobram em encarceramentos massivos.
As convicções de almas
governadas vigentes nas cobranças por punições exemplares e direitos
securitários, especialistas funcionalizados e intelectuais orgânicos
corporativistas estabelecem dicotomias maniqueístas ao policiamento ao se dirigirem
na luta contra a corrupção generalizada. Consideram que as ações violentas,
abusos, práticas de extermínio, execuções sumárias, torturas sistemáticas e
parcerias com o tráfico são meramente "problemas de estruturas" e
reformismos institucionais. Reduzem a questão para um problema de nivelamento
moral, desconsiderando os processos de racionalização da prática governamental
que estabelece metodologias para uma economia política governar e investir de
um modo particular em torno da segurança e diminuindo outros custos sociais, e
cabe ressaltar os jogos de subjetivação fascista nas tecnologias de si
produzidas pelo massmedia capitalístico ao qual orienta as escolhas
políticas da polícia numa campanha de escalada bélica e face ao controle
militarizado das áreas pobres.
A exceção alçada à
condição de dispositivo de governo de todas as democracias para garantir o
paradigma de segurança e continuidade do Estado e a seletividade biológica do
poder executivo é comemorada como uma promessa de tranquilidade. Assim, alicia
as clientelas que "aprendem" a sobreviver em espaços fechados,
cercados de proteção e constantemente vigiados ou como objetos de filantropia
de programas público-privados de ONGs, mídias, empresas e normas participativas
ao arsenal bélico em nome do sonho pela paz. Contudo, proliferam-se desejos de
vingança por parte daqueles que favorecem a truculência e reclamam por pena de
morte ao atacar os direitos humanos e suas garantias constitucionais, fixando
os estigmas da inumanidade dos "bandidos" e "traficantes
fugitivos".
Os espectadores de filmes
como o "Tropa de Elite 1 e 2", que fazem uso do paradigma bélico nas
questões de segurança pública, lotam as salas de cinemas deleitando-se com as
cenas de tortura e o espetáculo da execução ao glorificarem a truculência
policial como um ato heroico, enquanto seus diretores, sociólogos,
ex-policiais, consultorias e diletantes universitários compõem os setores que
se promovem com o mercado da violência e do controle do crime, gratificando
sucessos na comercialização da cidade apresentada como um território de guerra.
Essas produções, apesar de se engajarem como "bem intencionadas",
contribuem para a construção de subjetividades de uma "cultura
punitiva", demandas que entranham o dogma da pena a partir do senso comum
criminológico ao qual favorece a "eficiência exterminista" das
operações de segurança. Entre as oscilações de abertura democrática e
permanências autoritárias, as resistências se inibem em meio às adesões pelas
punitividades. Contingentes celebram o autoritarismo que antes era visto como
inimigo, hoje como "heróis da libertação".
A obrigação de todos a
cumprirem um contrato social mofado se transforma em cooptação com as invasões
militares, sustentam a figura e a necessidade nostálgica pelos tentáculos de Leviatã, que no momento teme a
“contaminação” de seu exército. Os poderosos chefes do comércio de drogas
ilícitas continuam ilesos e intocados, pois usufruem de proteção jurídica,
respaldo político e influências legalmente constituídas, enquanto os corpos de
seus agentes, a maioria compostos de jovens que habitam nas periferias ao qual
tocam o varejo da droga e ocupam pequenos, médios ou grandes cargos na
hierarquia local do tráfico, são eminentemente brutalizados tornando-se
descartáveis e vidas matáveis na vaga classificação da “guerra contra o
tráfico” e por aqueles que se beneficiam e administram a economia
proibicionista do mercado multinacional e conexionista das drogas em correlação
com os lucros concentrados pelas indústrias armamentistas, a lógica formal do
Estado articulada nas redes de ilícitos do capitalismo criminal-informal. Neste
sentido, superlotam os sistemas penitenciários ao criminalizar grupos
historicamente marginalizados. O massacre sistemático e o aumento da população
carcerária configuram-se em fonte de renda e do capital financeiro dos que
buscam preservar o patrimônio privado dos sistemas prisionais, sobretudo os de
segurança máxima, e continuidade de programas governamentais, que também
favorecem os interesses da grande imprensa e do oportunismo eleitoral ao qual
fazem vistas grossas para as questões de fundo.
Para isso, iniciativas
privadas e públicas investem milhões em Programas de Aceleração do Crescimento em que se utiliza
da domesticação e disciplina social para formar consensos e colaborações nas
“comunidades”. O combate e expulsão de “traficantes” e suas sócias milícias
administradas – escondendo seus rendimentos na aplicação do poder – atuam na
batalha estratégica de implementação do PAC em espaços georreferenciados como
“áreas de vulnerabilidade e de risco”. Neste panorama, poucos se opuseram aos
excessos de ações policiais, muitos ainda depositam esperanças nas UPPs (Unidades de Polícia
Pacificadora) – e suas estratégias de geopolítica urbana que atende aos serviços de
especulação imobiliária e capital turístico – e no aumento salarial para
policiais, apostando em treinamentos no embate aos milicianos e restauração da
"ordem contra o caos". As chamadas lideranças comunitárias assumem o
papel de condutores de consciências capturadas.
As políticas públicas no
Rio estão cada vez mais a favor do poder privatizado das franquias, dos
produtos industrializados e o governo privado da coisa pública pelo capital.
Com as justificativas de levar melhorias com as obras dos Jogos Olímpicos e
Copa do Mundo aos espaços desatendidos, o que se constata são os variáveis
empreendedorismos ordenando o controle de contenção truculenta da pobreza pelo
Estado Policial, e as UPPs são os deslocamentos dessa estratégia de policização
da vida cotidiana e da "reconquista" militar nas comunidades pobres.
A geograficidade dessas unidades é difundida pelas agências publicitárias como
um marketing perverso para a realização de megaeventos de rock e esportivos.
Por isso se faz perceber
o consentimento massivo às delações ou à vigilância policial que se intervém e
visa penetrar em todos os elementos da vida cotidiana, de modo a evitar
transparecer como arbitrariedade e excesso, mas mantendo o "controle
utilizado com todos os meios necessários" como uma garantia e solicitude
de um “pacto de seguridade” do Estado com a população governada pela modalidade
do poder pastoral.
Apesar de todos os
ufanismos punitivos, da ladainha imediatista da imprensa marrom
espetacularizada, sabe-se que o tráfico não cessará. A idealização de um modelo
pacificador, a corrida de preparar os cenários de 2014/2016 limpos, planejados
e seguros e o amor que rodeia as populações que "só querem ser
felizes" num campo favelizado protegido pelas muralhas da "força de
lei" e manutenção da ordem, projetos higienistas de apartheid social,
ecopolíticas homeostáticas e instalação das tecnologias de monitoramento a fim
de identificar áreas e grupos como perigosos e difundir quimeras de
"felicidade" com base na vigilância e controle a céu aberto, irão se
defrontar com uma nova redefinição territorial do tráfico, divisão de
territórios entre as extensões de polícia e tráfico (sem a polaridade que
muitos costumam acreditar em nome de suas simplificações dramáticas), novos
cargos distribuídos às milícias, reorganização de estratégias e atuações, assim
como são moduladas pelas facções em práticas paulistas. A governamentalidade do
Primeiro Comando da Capital talvez sirva de referência para a reorganização e
fluxo do tráfico no Rio de Janeiro, redimensionando o modelo que parecia ser
territorializado e sedentário.
A crença no War on Drugs e ondas de
criminalização pelas agências do sistema penal reforçam os dispositivos
genocidas e as fantasmagorias moralizadoras, a fraude midiática apenas trata
com opacidade as novas crises e mortes que irão surgir, não há escatologias na
lógica da guerra e na rede maquínica e microfísica do lucrativo mercado
internacional das drogas e negociações desviantes de armas, não ocorre da
maneira como anunciam os meios de comunicação com suas retóricas triunfalistas
e imagens espetaculares e cinematográficas.
Outros setores mais
solipsistas procuram entender os conflitos sob a ótica apressada que tende a
monumentalizar um "acontecimento maior", totalmente presentificado
numa amnésia histórica entusiasmada em aclamar uma suposta "vitória"
ao crime organizado ao qual mitifica a narrativa do agora encoberto de
ineditismos ao produzir o esquecimento do passado. Tais presentificações chegam
a se vangloriar das ocupações "sem banho de sangue", como se as
mortes ocorridas fossem algo desprezíveis e irrelevantes pela grandiosidade do
evento em curso, reativando a seletividade de uma violência sem luto.
Permanências da
militarização nas zonas indeterminadas do estado de exceção – que se exerce
como regra no interior da representatividade de um Estado democrático de
direito – e sua thanatopolítica; ampliação de disputas mercadológicas e
programas governamentais; a busca pela legitimidade da defesa social que
fomenta opressão, perseguição, mecanismos assassínios e disposição/exposição de
morte; ajudas e solidariedades docilizadas concedidas às instituições cuja
única finalidade é preservar a ordem estabelecida; no bojo dos conflitos civis
que passam a ser naturalizados ou virtualizados por simulações e simulacros da
indústria de entretenimento tecnológico (com suas pretensões de
"hiperrealidades" aos quais ressignificam signos flutuantes em
estetizações triviais e mediatizadas), a violência se tornou líquida e os
empreendedorismos racionalizam modernizar a guerra por outros meios e
aperfeiçoar a eficácia dos regimes liberais e neoliberais que constituem as
formas de obediência e renúncia de si mesmo, visando regulamentar e impedir as
relações pelas quais criam resistências que possibilitam a coragem de se pensar
em ser mais livres. Mas, nem todos esgotaram suas potências, pois onde há
poder, há devires que se voltam contra as autoridades, experimentando limiares
de intensas desobediências. A cobertura midiática e seus dados estatísticos não
mostrarão as forças de recusa, desaprovações e insurreições contra as
subordinações construídas para atender projetos de gestão policial e interesses
políticos transnacionais.