14 de abril de 2011

Parrhesía e a Potência da Recusa Contra a Ladinagem do Empreendedorismo de Si e Social

parrhesía nada tem a ver com a vocação empreendedora de almofadinhas bem comportados e ardilosos, engravatados ou desencanados que do alto de suas pompas zelam por burocracias e administram suas funções pelo amor ao seu emprego. As verdades parresiastas sempre serão insuportáveis aos profissionais normalizados que lutam para subir na vida. Os moderados posam-se de espertos articuladores à espera de oportunidades e não tem a coragem de recusar e rechaçar negócios. Em busca de um reconhecimento, pretendem ser alguém no futuro ordenando-se como um cidadão devedor ao empreendedorismo pessoal, social e ambiental. Esses não tem o atrevimento e a franqueza das ousadias que experimentam outros percursos, apenas reivindicam melhorias para a condição de sua sobrevivência. Educados para o capital-humano, são movidos a recompensas e regimes de dívidas infinitas almejando a felicidade morna.

"Viver, não é sobreviver".

5 de abril de 2011

Primavera Árabe?


Para intelectuais que simpatizam com os estilos de vida e modismos de joviais moderninhos, a temática sobre as liberdades individuais na atualidade dos conflitos no Oriente Médio e no norte da África passou a ser confundida com a individualidade narcisista permitida nas tecnologias de comunicação e quando se produz expectativas universalizantes do modo de vida ocidentalizado.
Essa nata mencionada acima agora está priorizando argumentos que valorizam a aclimatação de se sentir livres a partir da moldura de perfis em redes sociais, como se democracia contemporânea se reduzisse às ferramentas como a internet, celulares, smart phones, acesso irrestrito ao capital humano de redenção consumista e Aufklärung às fotogenias de luzes nos cabelos, deixando para segundo plano ou desconsiderando questões pertinentes como a suspensão de garantias constitucionais e constante violação de direitos humanos em regimes de exceção. Esse último ponto não interessa mais a eles, preferem idealizar no "mundo árabe" a sua nostalgia por Maio de 68 e se deixando levar pela sensação de liberdade assistida. Mesmo arraigados no universalismo e multiculturalismo ocidental, recaem no pensamento abissal de transportarem seus modelos e olhar etnocêntrico às alteridades, consideram que os árabes estão sofrendo de crises identitárias pela qual suas vontades se direcionam na assimilação ao estilo de vida do Ocidente.
Parece que, o Ocidente e uma leva de sua “geração sexy” (IWEALA) se voltaram para o Oriente Médio e o norte da África com a idéia de afirmar sua superioridade cultural. Mostram-se bem intencionados, e como missionários se engajam em divulgar sua mensagem para o restante do mundo na qual o outro serve apenas para validar a sua própria imagem imaginária.
Em outros termos, percebe-se um esforço de persuasão em que o processo de ocidentalização por via de regra devesse igualar a todos em sua chantagem liberal de “seja igual a nós”, impondo paradoxalmente a própria diferença igualitária simplesmente por não tolerarem a “outridade”.
A leitura desses autores “pós-modernos” que reiteradamente se subterfugiam da análise crítica do presente e questionamento do hoje e agora por conta de seu olhar nostálgico e melancólico do passado e a “primavera” de um futuro romantizado, na sua busca por reconhecimento e entendimento – como uma subjetividade que se projeta no outro na preocupação de definir a si mesmo preservando a sua ontologia ecológica – se mantêm numa certa distância ao mostrar seu respeito e tolerância às diversidades étnicas e religiosas, esses fatores tornam-se válidos apenas por tencionarem pregar seu evangelho multicultural, mesmo que para isto seja preciso se fantasiar de Napoleão Bonaparte ou adotar Kant como o caudilho do momento no sonho capcioso por “revoluções”. Agora, o uso da palavra "revolução" não condiz mais com mudanças radicais, mas reivindicações ajustadas às negociações e protestos realizados em zonas demarcadas e autorizadas. Talvez seja a maneira que encontraram para garantir a sua paz interior na indiferença ocidental pela guerra por outros meios nas arábias.
No fundo, assumiram a posição do budismo europeu e o taoísmo na prosperidade globalizada de interesses capitais. O valor universal da democracia converteu-se numa forma mais eficiente e plastificada da democracia reproduzida nos moldes liberais do capitalismo cognitivoassim como analisou Cocco, Negri e Hardt. Não se pode deixar de notar como o supostamente universalista aposta na "primavera árabe" em nome dos direitos humanos, tradições francesas de liberdade e dignidade e que terminam como uma defesa do modo de vida particular ocidentalista e as coordenadas de sua identidade e cultura. A retirada da burka do Outro-coisa apenas revela a face do nosso escudo protetor impotente diante do “próximo” e incapaz de encarar sujeitos dessubjetivados ao lançar olhares presumidos na dimensão apropriada do “próximo” na distância estratégica das políticas de visibilidade e monitoramento da sociedade de controle.
As organizações governamentais e os conservadores da ordem internacional não estão vislumbrando o espírito de rebeldia da juventude árabe, estão antenados para se auto imunizarem contra ataques fundamentalistas e alardearem um suposto perigo que se apresenta como uma ameaça à sociedade civil transterritorializada ou identificar as insurreições populares como “terrorismo” caso elas ultrapassem os procedimentos seguros e delimitados da reivindicação. O dilema da geopolítica global, especificamente do governo dos Estados Unidos, se baseia no medo de radicais islâmicos chegarem ao poder.
Sob as promessas de progresso e melhoria da qualidade de vida, a modernidade tecnocientífica exibe seu desejo por teleologias querendo mostrar a todos que vale a pena exaltar as virtudes e benefícios do nosso destino moderno e biotecnológico, como algo que o olhar na mancha no outro não pudesse escapar. Contudo, autores ingênuos preferem apostar no direito ao sonho e não no risco de se vivenciar o impossível, como provoca Žižek.
A tal “primavera” se orienta mais em horizontes históricos de produção normativa editados no avigoramento de um futuro indeterminado, não espera por impulsos liberadores, quer ver o "mundo árabe" satisfeito e acomodado com as promessas de democratização, "transição e eleição", assim como foram articuladas sobre as multidões na Tunísia e no Egito. Ao contrário do que anunciam esse prisma com outros países e seus governos, a falsa esperança depositada visa interditar a possibilidade ontológica e política dos conflitos árabes de apropriar-se de suas próprias auroras e abrir-se ao próprio ser não como essência ou atributo construídos ao modo de nossa racionalidade. Nota-se aí a impotência por parte daqueles que pretendem coibir e destruir as experimentações específicas e singulares que provocam a fenda, a ruptura, a abertura para a comunidade que vem, nas palavras de Agamben. Em termos de esclarecimentos que contam os minutos na pretensão de impedir novos devires, a aclamada “primavera árabe”, ufânica e tendenciosa, se aprisiona no sonho do outro e, como diria Deleuze: “Se você ficar preso no sonho do outro, você está fodido”.

Exceção e Regimes de Obediência

Dezembro/2010

Na atual conformação das forças de contestação para as negociações diplomáticas, empreendedoras e moderadas, a cidadania seletiva que produz a vida nua convive na linha tênue de cercos colaborativos. Com unidades, assujeitados prestam obediência às ofensivas de controle quando a segurança policial reforma condutas de uma subserviência voluntária. Apoiam, consentem, gratificam e aplaudem ocupações e repressões estatais. A vontade de sujeição oscila em obedecer aos operadores do tráfico e fazer parcerias às operações de guerra, forças armadas e todo o aparato policial da razão governamental de Estado.
Nos morros desprovidos de serviços públicos e políticas sociais efetivas, parcelas de moradores começam a aceitar noções equivocadas defendidas pelo engodo jornalístico de que o Estado brasileiro se faz presente na Vila Cruzeiro e no Complexo do Alemão, vindo a existir simplesmente como uma recuperação do tal "monopólio da violência". A falaciosa exortação da "retomada das favelas pelo Estado" desconsidera a historicidade do processo de favelização e segregação urbana socioespacial, oriundo das desigualdades que o Estado sempre ignorou. A imprensa ressalta apenas os braços armados do Estado em espaços segregados. Desse modo, é comum se deparar com posições que associam a miséria e a pobreza às questões criminais, consenso feito pelas camadas mais conservadoras da sociedade, principalmente as que criminalizam os pobres culpabilizando-os por seus sentimentos de medo e insegurança.
As medidas emergenciais são acionadas a posteriori de serem reconhecidos os "fracassos" e limites de longa duração do poder soberano no combate à criminalidade. As prisões colocadas como sistemas "falidos" corroboram em seus próprios disfuncionamentos a gestão de novos ilegalismos que desdobram em encarceramentos massivos.
As convicções de almas governadas vigentes nas cobranças por punições exemplares e direitos securitários, especialistas funcionalizados e intelectuais orgânicos corporativistas estabelecem dicotomias maniqueístas ao policiamento ao se dirigirem na luta contra a corrupção generalizada. Consideram que as ações violentas, abusos, práticas de extermínio, execuções sumárias, torturas sistemáticas e parcerias com o tráfico são meramente "problemas de estruturas" e reformismos institucionais. Reduzem a questão para um problema de nivelamento moral, desconsiderando os processos de racionalização da prática governamental que estabelece metodologias para uma economia política governar e investir de um modo particular em torno da segurança e diminuindo outros custos sociais, e cabe ressaltar os jogos de subjetivação fascista nas tecnologias de si produzidas pelo massmedia capitalístico ao qual orienta as escolhas políticas da polícia numa campanha de escalada bélica e face ao controle militarizado das áreas pobres.
A exceção alçada à condição de dispositivo de governo de todas as democracias para garantir o paradigma de segurança e continuidade do Estado e a seletividade biológica do poder executivo é comemorada como uma promessa de tranquilidade. Assim, alicia as clientelas que "aprendem" a sobreviver em espaços fechados, cercados de proteção e constantemente vigiados ou como objetos de filantropia de programas público-privados de ONGs, mídias, empresas e normas participativas ao arsenal bélico em nome do sonho pela paz. Contudo, proliferam-se desejos de vingança por parte daqueles que favorecem a truculência e reclamam por pena de morte ao atacar os direitos humanos e suas garantias constitucionais, fixando os estigmas da inumanidade dos "bandidos" e "traficantes fugitivos".
Os espectadores de filmes como o "Tropa de Elite 1 e 2", que fazem uso do paradigma bélico nas questões de segurança pública, lotam as salas de cinemas deleitando-se com as cenas de tortura e o espetáculo da execução ao glorificarem a truculência policial como um ato heroico, enquanto seus diretores, sociólogos, ex-policiais, consultorias e diletantes universitários compõem os setores que se promovem com o mercado da violência e do controle do crime, gratificando sucessos na comercialização da cidade apresentada como um território de guerra. Essas produções, apesar de se engajarem como "bem intencionadas", contribuem para a construção de subjetividades de uma "cultura punitiva", demandas que entranham o dogma da pena a partir do senso comum criminológico ao qual favorece a "eficiência exterminista" das operações de segurança. Entre as oscilações de abertura democrática e permanências autoritárias, as resistências se inibem em meio às adesões pelas punitividades. Contingentes celebram o autoritarismo que antes era visto como inimigo, hoje como "heróis da libertação".
A obrigação de todos a cumprirem um contrato social mofado se transforma em cooptação com as invasões militares, sustentam a figura e a necessidade nostálgica pelos tentáculos de Leviatã, que no momento teme a “contaminação” de seu exército. Os poderosos chefes do comércio de drogas ilícitas continuam ilesos e intocados, pois usufruem de proteção jurídica, respaldo político e influências legalmente constituídas, enquanto os corpos de seus agentes, a maioria compostos de jovens que habitam nas periferias ao qual tocam o varejo da droga e ocupam pequenos, médios ou grandes cargos na hierarquia local do tráfico, são eminentemente brutalizados tornando-se descartáveis e vidas matáveis na vaga classificação da “guerra contra o tráfico” e por aqueles que se beneficiam e administram a economia proibicionista do mercado multinacional e conexionista das drogas em correlação com os lucros concentrados pelas indústrias armamentistas, a lógica formal do Estado articulada nas redes de ilícitos do capitalismo criminal-informal. Neste sentido, superlotam os sistemas penitenciários ao criminalizar grupos historicamente marginalizados. O massacre sistemático e o aumento da população carcerária configuram-se em fonte de renda e do capital financeiro dos que buscam preservar o patrimônio privado dos sistemas prisionais, sobretudo os de segurança máxima, e continuidade de programas governamentais, que também favorecem os interesses da grande imprensa e do oportunismo eleitoral ao qual fazem vistas grossas para as questões de fundo.
Para isso, iniciativas privadas e públicas investem milhões em Programas de Aceleração do Crescimento em que se utiliza da domesticação e disciplina social para formar consensos e colaborações nas “comunidades”. O combate e expulsão de “traficantes” e suas sócias milícias administradas – escondendo seus rendimentos na aplicação do poder – atuam na batalha estratégica de implementação do PAC em espaços georreferenciados como “áreas de vulnerabilidade e de risco”. Neste panorama, poucos se opuseram aos excessos de ações policiais, muitos ainda depositam esperanças nas UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) – e suas estratégias de geopolítica urbana que atende aos serviços de especulação imobiliária e capital turístico – e no aumento salarial para policiais, apostando em treinamentos no embate aos milicianos e restauração da "ordem contra o caos". As chamadas lideranças comunitárias assumem o papel de condutores de consciências capturadas.
As políticas públicas no Rio estão cada vez mais a favor do poder privatizado das franquias, dos produtos industrializados e o governo privado da coisa pública pelo capital. Com as justificativas de levar melhorias com as obras dos Jogos Olímpicos e Copa do Mundo aos espaços desatendidos, o que se constata são os variáveis empreendedorismos ordenando o controle de contenção truculenta da pobreza pelo Estado Policial, e as UPPs são os deslocamentos dessa estratégia de policização da vida cotidiana e da "reconquista" militar nas comunidades pobres. A geograficidade dessas unidades é difundida pelas agências publicitárias como um marketing perverso para a realização de megaeventos de rock e esportivos.
Por isso se faz perceber o consentimento massivo às delações ou à vigilância policial que se intervém e visa penetrar em todos os elementos da vida cotidiana, de modo a evitar transparecer como arbitrariedade e excesso, mas mantendo o "controle utilizado com todos os meios necessários" como uma garantia e solicitude de um “pacto de seguridade” do Estado com a população governada pela modalidade do poder pastoral.
Apesar de todos os ufanismos punitivos, da ladainha imediatista da imprensa marrom espetacularizada, sabe-se que o tráfico não cessará. A idealização de um modelo pacificador, a corrida de preparar os cenários de 2014/2016 limpos, planejados e seguros e o amor que rodeia as populações que "só querem ser felizes" num campo favelizado protegido pelas muralhas da "força de lei" e manutenção da ordem, projetos higienistas de apartheid social, ecopolíticas homeostáticas e instalação das tecnologias de monitoramento a fim de identificar áreas e grupos como perigosos e difundir quimeras de "felicidade" com base na vigilância e controle a céu aberto, irão se defrontar com uma nova redefinição territorial do tráfico, divisão de territórios entre as extensões de polícia e tráfico (sem a polaridade que muitos costumam acreditar em nome de suas simplificações dramáticas), novos cargos distribuídos às milícias, reorganização de estratégias e atuações, assim como são moduladas pelas facções em práticas paulistas. A governamentalidade do Primeiro Comando da Capital talvez sirva de referência para a reorganização e fluxo do tráfico no Rio de Janeiro, redimensionando o modelo que parecia ser territorializado e sedentário.
A crença no War on Drugs e ondas de criminalização pelas agências do sistema penal reforçam os dispositivos genocidas e as fantasmagorias moralizadoras, a fraude midiática apenas trata com opacidade as novas crises e mortes que irão surgir, não há escatologias na lógica da guerra e na rede maquínica e microfísica do lucrativo mercado internacional das drogas e negociações desviantes de armas, não ocorre da maneira como anunciam os meios de comunicação com suas retóricas triunfalistas e imagens espetaculares e cinematográficas.
Outros setores mais solipsistas procuram entender os conflitos sob a ótica apressada que tende a monumentalizar um "acontecimento maior", totalmente presentificado numa amnésia histórica entusiasmada em aclamar uma suposta "vitória" ao crime organizado ao qual mitifica a narrativa do agora encoberto de ineditismos ao produzir o esquecimento do passado. Tais presentificações chegam a se vangloriar das ocupações "sem banho de sangue", como se as mortes ocorridas fossem algo desprezíveis e irrelevantes pela grandiosidade do evento em curso, reativando a seletividade de uma violência sem luto.
Permanências da militarização nas zonas indeterminadas do estado de exceção – que se exerce como regra no interior da representatividade de um Estado democrático de direito – e sua thanatopolítica; ampliação de disputas mercadológicas e programas governamentais; a busca pela legitimidade da defesa social que fomenta opressão, perseguição, mecanismos assassínios e disposição/exposição de morte; ajudas e solidariedades docilizadas concedidas às instituições cuja única finalidade é preservar a ordem estabelecida; no bojo dos conflitos civis que passam a ser naturalizados ou virtualizados por simulações e simulacros da indústria de entretenimento tecnológico (com suas pretensões de "hiperrealidades" aos quais ressignificam signos flutuantes em estetizações triviais e mediatizadas), a violência se tornou líquida e os empreendedorismos racionalizam modernizar a guerra por outros meios e aperfeiçoar a eficácia dos regimes liberais e neoliberais que constituem as formas de obediência e renúncia de si mesmo, visando regulamentar e impedir as relações pelas quais criam resistências que possibilitam a coragem de se pensar em ser mais livres. Mas, nem todos esgotaram suas potências, pois onde há poder, há devires que se voltam contra as autoridades, experimentando limiares de intensas desobediências. A cobertura midiática e seus dados estatísticos não mostrarão as forças de recusa, desaprovações e insurreições contra as subordinações construídas para atender projetos de gestão policial e interesses políticos transnacionais.

Arte e Niilismo: Algumas Marteladas Intempestivas

Julho/2010

Aqui vos falo francamente...
Não carrego dívidas... Muito menos com aqueles que se dizem artistas. Tal excerto breve e intempestivo elabora a própria vida como uma obra de arte e não um objeto de negação da finitude e consolação metafísica.
Há processos de subjetivação nas artes de viver, no uso dos prazeres e costumes, e não uma contemplação mimética do mundo que adota a arte como um propósito de redenção essencialista pelas crenças teológicas e seus sucedâneos axiológicos esvaziados entre as diversas conformidades sociais e culturais.
Para mim é motivo de ironia e sarcasmo os modos aos quais certos sujeitos se prestam encantadamente aos regimes de obediência em seus aspectos práticos e simbólicos, como se fossem vassalos anacrônicos distantes de seu tempo presente, fadados a governar a si mesmo em representatividade a um Édipo que veio a se tornar universal e transcendental a partir de imaginários fabricados pelo mass media e o controle do biocapital sobre processos identitários. É cômico e enfadonho a tolice e o esgotamento reativo de fanáticos que se deixam levar por fetiches, arquétipos e simulacros de um matriarcalismo ecológico enquanto prova de fidelidade e projeção de sua servidão voluntária ao nada e justificativa de disseminar o seu ódio contra a "humanidade". Provocam-me risos de escárnio e deboche o sofrimento ascético dos renunciadores e também a moral dos hedonistas. Não passam de sacerdotes fantasiados pela má consciência que reativam cultos fetichistas ao sagrado como anestésico profano de libertinagens, desespero e sentimento de perda diante do vácuo de valor.
Há em seus movimentos de vanguarda a comodificação estabelecida nos mais execráveis conglomerados culturais e o falso pensamento crítico de certas demandas de "subcultura" submetidas às artimanhas da grande muralha simbólica da doxa. Seus devaneios são meros subprodutos difundidos na vulgata planetária do capitalismo global e discursos neoliberais. Disseco seus disfarces que tentam reduzir tradições históricas singulares às preocupações narcisistas do momento, produzindo significados vazios e desparticularizados pela falsa universalização e axiomatização fictícia da racionalidade imperialista. Esses fanatismos propagam a violência não apenas no campo da coerção física das relações de dominação, como também fazem uso do forjamento de signos que tem a função de transformar em “lugares-comuns” realidades complexas que possuem suas próprias particularidades históricas. Assim, a dominação simbólica oculta os significados originais das experimentações históricas singulares, ao fazer com que sejam desconhecidas como tais e reconhecidas como universais a partir de vernizes modernosos e instrumentos de desistoricização e despolitização.
Por outro lado, se faz notar a demagogia e a hipocrisia cada vez mais vigente na afeição de algumas parcelas de especialistas pelos modos de vida dos chamados excluídos. Os grupos sociais considerados marginalizados passaram a ser visados também pelos cordeiros universitários dedicados e bajuladores, que a partir de seu exotismo étnico e urbano colonizam, expropriam e revendem formas de vida e subjetividade em nome do oportunismo de suas carreiras acadêmicas financiadas e incentivadas por programas de bolsas de estudos (muitas vezes concedidas a quem não precisa), benefícios de ordem e cooperação estatal, orientações nepóticas/paternalistas e as variáveis governamentais das tutelagens meritocráticas ou racialistas.
A curiosidade fútil e academicista típica de socialite; as agências prestadoras de serviços assistenciais que gerenciam a manutenção de misérias governadas; a compaixão vitimizadora do rebanho competente mobilizado pelo aliciamento epistêmico das instituições do conhecimento que medem o valor das produções e resultados de pesquisa por critérios e modelos quantitativos; profissionais incumbidos de recensear e delimitar estatísticas e os georreferenciamentos de risco e "vulnerabilidade" para o governo ecopolítico e homeostático da segurança. A meu ver são avatares adequados à onda do politicamente correto e aos compromissos da economia material e imaterial da máquina capitalística cultural e conexionista, pois partem da expropriação das redes de vida e comercialização de territórios existenciais por meio de vendas massivas de livros, acessos constantes e acelerados às imagens, informações, museus, galerias, ONGs, turismos, ativismos humanitários das "ciências de sustentabilidade", campanhas publicitárias, matérias jornalísticas, etnografias, pesquisas de campo e de cátedra, colóquios, fluxos de publicação em curto prazo de revistas, artigos, relatórios, entrevistas e pareceres especializados que prometem fórmulas de felicidades utilizando-se das realizações consumistas e interesses vampirizados que sugam as formas de vida singular e coletiva como algo efêmero e descartável.
Aponto de forma contundente o quanto a academia e os princípios de cidadania se assujeitam aos dispositivos de captura, trabalhando para os mapeamentos da administração punitiva e preventiva tendo como suporte a tautologia de sociologias, geografias, arqueologias e antropologias funcionalistas que oferecem as bases descritivas para uma intelligentsia  expandir a repressão, a defesa social e a positividade biopolítica do poder normalizador em torno dos investimentos afetivos e cognitivos de capital humano segundo os paradigmas da ciência econômica que planejam regulamentar as respectivas sociabilidades.
Pronuncio agora impiedosamente e com devido rigor a sentença do trágico contra todos os empreendimentos inconsistentes e desprezíveis que pretendem esmagar a potência do pensamento e da arte como afirmação de vida quando tentam vulgarizar, desistoricizar e capturar as singularidades com a justificativa retórica e dialética da comunhão e tribalismos planetarizados sob o tropo de perfumarias teóricas, ideológicas e literárias que naturalizam as desigualdades, aromatizam os conflitos, "toleram" a cristalização de identidades essencializadas congelando-as no tempo e na história, incentivam a diversidade para administrá-la entre a promoção de anistia aos genocídios e a amnésia dos massacres em troca de diferenciações "ecléticas", folclóricas, incautas e acríticas. Repetem da pior forma os vícios doutrinários do naturalismo ao personificar os fenômenos naturais como um ente vingativo e peremptório. Não confundam as multipheidades rizomáticas com as lógicas binárias das ramificações arborescentes ou com as hierarquias totalitárias e fasciculadas do sistema-radícula, nem tampouco associá-las à teleologia cosmopolita dos sectários.
Como seria interessante se o lugar da arte reservasse a coragem bárbara e nômade de um antiplatonismo ou a perspectiva antiaristotélica da arte. Nesse espaço heterotópico e real ela iria se despir cinicamente como um intenso devir dionisíaco de desmascaramento estético da existência humana. Potencializaria atitudes parresiastas incapturáveis ao invés de sustentar artifícios místicos falidos em meio à insegurança ontológica e o invólucro multiculturalista idílico na moda dos pós-modernos etnocêntricos, diletantes e moribundos em seus hermetismos pseudo-xamânicos entusiasmados e volúveis. Descolecionaria bens culturais e simbólicos para escapar das teias hegemônicas do globalitarismo e os abismos do neocolonialismo. A fascinação e olhar exótico lançado às alteridades não se difere do projeto de ocidentalização da modernidade, rebelar-se de seus padrões culturais para se entregar inteiramente ao encantamento da “cultura do outro” se estende como uma outra face da colonialidade do saber-poder.
A arte é criação e transformação da própria vida, e não evasão contemplativa do homem na busca passiva pelo eterno ou inóspito. A arte de viver possibilita desvios, produção de agenciamentos singulares e coletivos desterritorializados, dobra de fora das resistências enquanto contra-poder às disciplinas despóticas, saídas e linhas de fugas para livrar-se dos microfascismos, da paixão sintomática pelo poder e das instâncias de soberania que dita as normas daquilo que se deve ou não fazer através da governança de hábitos cotidianos. A vida como obra de arte não plagia os sentidos da existência a procura de referenciais nostálgicos opacos na sombra de fundamentos insubsistentes, cartografa vetores de escape aos mapas, séries e sequestros de inclusão total e exclusão maciça, desnaturaliza conceitos ao se esquivar de categorias e estereótipos, se descola das ofertas e mediações do capital ao produzir sua autovalorização insubordinável, ela tem a capacidade de construir e reinventar territórios subjetivos que experimentam forças autônomas de vitalidades.

GARLAND, David - Governamentalidade e o Problema da Criminalidade: Foucault, Criminologia e Sociologia


Abril/2010


Disponibilizo o texto de David Garland "Governmentality and the Problem of Crime: Foucault, Criminology, Sociology" traduzido para o português. Esse texto foi publicado em sua versão original na revista internacional Theoretical Criminology, University of Edinburgh, London, SAGE publications, 1997;1: 173-214. Nesse artigo, Garland analisa as implicações de uma nova racionalidade governamental que passou a orientar as práticas penais na sociedade moderna a partir dos anos 80 e 90, quando o crime se transforma em um acontecimento corriqueiro, como fato social previsível ao cálculo de risco, redução de custos e medidas de prevenção.
O problema da criminalidade anteriormente fundado sobre o postulado da patologia e anormalidade do indivíduo criminoso como aquele que apresentava um desvio de conduta normal e civilizada, adquire efeitos teóricos e práticos das "novas criminologias da vida cotidiana" (GARLAND, 1999) no qual abrangem a "teoria da escolha racional", a "teoria da atividade de rotina", o "crime como oportunidade" e a "prevenção da criminalidade situacional". Essas teorias sustentam a assertiva de que o crime se constitui como um risco rotineiro de nossa vida econômica e social contemporânea. Para o criminoso seria uma oportunidade, uma escolha de carreira e não necessariamente como resultado de seu caráter "anormal". A estimativa da ocorrência de eventos criminosos se converte numa operação de rotina sistematizada, por exemplo, como se procede as avaliações e respectivos cômputos dos acidentes de trânsito.
Devido a "normalidade" das crescentes taxas de criminalidade e as limitações dos organismos de justiça criminal na prevenção e controle social do crime, tornou-se cada vez mais frequente, sobretudo nos documentos governamentais, nos relatórios parlamentares, policiais e na apropriação do tema pelos setores partidários, o questionamento sobre a situação limítrofe do poder e alcance da soberania do Estado e sua capacidade em assegurar a segurança e a repressão criminal.
Tais limites do Estado soberano diante da "guerra contra o crime" e contenção dos índices de criminalidade não poderiam ser reconhecidos publicamente, pois fomentaria um desastre político. Apesar do discurso da guerra permanecer nas falácias do governo e utilizado como retórica no controle da criminalidade, houve mudanças significativas nos objetivos da política criminal. Ao invés de pensarem que o Estado poderia ganhar a "guerra contra o crime", de forma comedida os organismos governamentais (polícia, tribunais, prisões, trabalho social, etc.) se deram conta de que não poderiam por si só tomar as providências contra a prevenção e controle do crime. Começaram a se preocupar com uma melhor gestão dos riscos e dos recursos que viriam a reduzir o medo do crime e os custos da criminalidade e da justiça criminal, oferecendo maior visibilidade às vítimas e ao público em geral como uma tarefa do governo central em produzir e delegar as competências para os "cidadãos ativos" inter-relacionados com os objetivos preventivos, incitando as tecnologias de monitoramento, identificação e esquadrinhamento de condutas consideradas delinquentes como um princípio de compromisso particular e individual de cidadania.
A governamentalidade do crime veio a mobilizar as estratégias de "responsabilização" como um mecanismo de controle capilarizado da criminalidade situacional. As medidas preventivas do controle do crime passam a ser responsabilidade de empregadores, moradores, urbanistas, comerciantes, companhias de transporte, autoridades escolares, profissionais da saúde e a família, de maneira indireta participam da ação contra o crime para manter a ordem em sua "comunidade".
A nova racionalidade governamental exerce um trabalho conjunto entre o Estado e as instituições, estabelece-se a obrigação e participação de grupos, indivíduos e organizações não-governamentais, todos inseridos numa rede de cooperação desempenhando um papel central na prevenção da criminalidade, calculabilidade do risco e regulamentação dos dispositivos de segurança. O crime é administrado como um problema de probabilidade em meio à normalização populacional, principalmente, na acumulação dos dados de pesquisa conferidos pelas vítimas que contribuem para o depósito informativo da vigilância nas tecnologias de comunicação.
Em suma, percebe-se um estilo de governo que paulatinamente se afasta das propostas assistencialistas do Estado de Bem-Estar Social e seus ideais de reabilitação, emergindo-se uma administração da criminalidade mais voltada para as políticas neoliberais que se investem expressivamente nas tecnologias securitárias - cada vez mais privatizadas - sob a forma de racionalização econômica da prevenção da criminalidade. Segue abaixo o link do texto:


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