Julho/2010
Aqui vos falo
francamente...
Não carrego dívidas...
Muito menos com aqueles que se dizem artistas. Tal excerto breve e intempestivo
elabora a própria vida como uma obra de arte e não um objeto de negação da
finitude e consolação metafísica.
Há processos de
subjetivação nas artes de viver, no uso dos prazeres e costumes, e não uma
contemplação mimética do mundo que adota a arte como um propósito de redenção
essencialista pelas crenças teológicas e seus sucedâneos axiológicos esvaziados
entre as diversas conformidades sociais e culturais.
Para mim é motivo de
ironia e sarcasmo os modos aos quais certos sujeitos se prestam encantadamente
aos regimes de obediência em seus aspectos práticos e simbólicos, como se
fossem vassalos anacrônicos distantes de seu tempo presente, fadados a governar
a si mesmo em representatividade a um Édipo que veio a se tornar universal e
transcendental a partir de imaginários fabricados pelo mass media e o controle do
biocapital sobre processos identitários. É cômico e enfadonho a tolice e o
esgotamento reativo de fanáticos que se deixam levar por fetiches, arquétipos e
simulacros de um matriarcalismo ecológico enquanto prova de fidelidade e
projeção de sua servidão voluntária ao nada e justificativa de disseminar o seu
ódio contra a "humanidade". Provocam-me risos de escárnio e deboche o
sofrimento ascético dos renunciadores e também a moral dos hedonistas. Não
passam de sacerdotes fantasiados pela má consciência que reativam cultos
fetichistas ao sagrado como anestésico profano de libertinagens, desespero e
sentimento de perda diante do vácuo de valor.
Há em seus movimentos de
vanguarda a comodificação estabelecida nos mais execráveis conglomerados
culturais e o falso pensamento crítico de certas demandas de
"subcultura" submetidas às artimanhas da grande muralha simbólica da doxa. Seus devaneios são meros
subprodutos difundidos na vulgata planetária do capitalismo global e discursos
neoliberais. Disseco seus disfarces que tentam reduzir tradições históricas
singulares às preocupações narcisistas do momento, produzindo significados
vazios e desparticularizados pela falsa universalização e axiomatização
fictícia da racionalidade imperialista. Esses fanatismos propagam a violência
não apenas no campo da coerção física das relações de dominação, como também
fazem uso do forjamento de signos que tem a função de transformar em
“lugares-comuns” realidades complexas que possuem suas próprias
particularidades históricas. Assim, a dominação simbólica oculta os
significados originais das experimentações históricas singulares, ao fazer com
que sejam desconhecidas como tais e reconhecidas como universais a partir de
vernizes modernosos e instrumentos de desistoricização e despolitização.
Por outro lado, se faz
notar a demagogia e a hipocrisia cada vez mais vigente na afeição de algumas
parcelas de especialistas pelos modos de vida dos chamados excluídos. Os grupos
sociais considerados marginalizados passaram a ser visados também pelos
cordeiros universitários dedicados e bajuladores, que a partir de seu exotismo
étnico e urbano colonizam, expropriam e revendem formas de vida e subjetividade
em nome do oportunismo de suas carreiras acadêmicas financiadas e incentivadas
por programas de bolsas de estudos (muitas vezes concedidas a quem não
precisa), benefícios de ordem e cooperação estatal, orientações
nepóticas/paternalistas e as variáveis governamentais das tutelagens
meritocráticas ou racialistas.
A curiosidade fútil e
academicista típica de socialite; as agências prestadoras de serviços
assistenciais que gerenciam a manutenção de misérias governadas; a compaixão
vitimizadora do rebanho competente mobilizado pelo aliciamento epistêmico das
instituições do conhecimento que medem o valor das produções e resultados de
pesquisa por critérios e modelos quantitativos; profissionais incumbidos de
recensear e delimitar estatísticas e os georreferenciamentos de risco e
"vulnerabilidade" para o governo ecopolítico e homeostático da
segurança. A meu ver são avatares adequados à onda do politicamente correto e aos compromissos
da economia material e imaterial da máquina capitalística cultural e
conexionista, pois partem da expropriação das redes de vida e comercialização
de territórios existenciais por meio de vendas massivas de livros, acessos
constantes e acelerados às imagens, informações, museus, galerias, ONGs,
turismos, ativismos humanitários das "ciências de sustentabilidade",
campanhas publicitárias, matérias jornalísticas, etnografias, pesquisas de
campo e de cátedra, colóquios, fluxos de publicação em curto prazo de revistas,
artigos, relatórios, entrevistas e pareceres especializados que prometem
fórmulas de felicidades utilizando-se das realizações consumistas e interesses
vampirizados que sugam as formas de vida singular e coletiva como algo efêmero
e descartável.
Aponto de forma
contundente o quanto a academia e os princípios de cidadania se assujeitam aos
dispositivos de captura, trabalhando para os mapeamentos da administração
punitiva e preventiva tendo como suporte a tautologia de sociologias,
geografias, arqueologias e antropologias funcionalistas que oferecem as bases descritivas para
uma intelligentsia expandir a repressão, a defesa social e a positividade
biopolítica do poder normalizador em torno dos investimentos afetivos e
cognitivos de capital humano segundo os paradigmas da ciência econômica que
planejam regulamentar as respectivas sociabilidades.
Pronuncio agora
impiedosamente e com devido rigor a sentença do trágico contra todos os
empreendimentos inconsistentes e desprezíveis que pretendem esmagar a potência
do pensamento e da arte como afirmação de vida quando tentam vulgarizar,
desistoricizar e capturar as singularidades com a justificativa retórica e
dialética da comunhão e tribalismos planetarizados sob o tropo de perfumarias
teóricas, ideológicas e literárias que naturalizam as desigualdades, aromatizam
os conflitos, "toleram" a cristalização de identidades
essencializadas congelando-as no tempo e na história, incentivam a diversidade
para administrá-la entre a promoção de anistia aos genocídios e a amnésia dos
massacres em troca de diferenciações "ecléticas", folclóricas,
incautas e acríticas. Repetem da pior forma os vícios doutrinários do
naturalismo ao personificar os fenômenos naturais como um ente vingativo e
peremptório. Não confundam as multipheidades rizomáticas com as lógicas
binárias das ramificações arborescentes ou com as hierarquias totalitárias e
fasciculadas do sistema-radícula, nem tampouco associá-las à teleologia
cosmopolita dos sectários.
Como seria interessante
se o lugar da arte reservasse a coragem bárbara e nômade de um antiplatonismo
ou a perspectiva antiaristotélica da arte. Nesse espaço heterotópico e real ela
iria se despir cinicamente como um intenso devir dionisíaco de desmascaramento
estético da existência humana. Potencializaria atitudes parresiastas
incapturáveis ao invés de sustentar artifícios místicos falidos em meio à
insegurança ontológica e o invólucro multiculturalista idílico na moda dos
pós-modernos etnocêntricos, diletantes e moribundos em seus hermetismos
pseudo-xamânicos entusiasmados e volúveis. Descolecionaria bens culturais e
simbólicos para escapar das teias hegemônicas do globalitarismo e os abismos do
neocolonialismo. A fascinação e olhar exótico lançado às alteridades não se
difere do projeto de ocidentalização da modernidade, rebelar-se de seus padrões
culturais para se entregar inteiramente ao encantamento da “cultura do outro”
se estende como uma outra face da colonialidade do saber-poder.
A arte é criação e
transformação da própria vida, e não evasão contemplativa do homem na busca
passiva pelo eterno ou inóspito. A arte de viver possibilita desvios, produção
de agenciamentos singulares e coletivos desterritorializados, dobra de fora das
resistências enquanto contra-poder às disciplinas despóticas, saídas e linhas
de fugas para livrar-se dos microfascismos, da paixão sintomática pelo poder e
das instâncias de soberania que dita as normas daquilo que se deve ou não fazer
através da governança de hábitos cotidianos. A vida como obra de arte não
plagia os sentidos da existência a procura de referenciais nostálgicos opacos
na sombra de fundamentos insubsistentes, cartografa vetores de escape aos
mapas, séries e sequestros de inclusão total e exclusão maciça, desnaturaliza
conceitos ao se esquivar de categorias e estereótipos, se descola das ofertas e
mediações do capital ao produzir sua autovalorização insubordinável, ela tem a
capacidade de construir e reinventar territórios subjetivos que experimentam
forças autônomas de vitalidades.
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