5 de abril de 2011

Exceção e Regimes de Obediência

Dezembro/2010

Na atual conformação das forças de contestação para as negociações diplomáticas, empreendedoras e moderadas, a cidadania seletiva que produz a vida nua convive na linha tênue de cercos colaborativos. Com unidades, assujeitados prestam obediência às ofensivas de controle quando a segurança policial reforma condutas de uma subserviência voluntária. Apoiam, consentem, gratificam e aplaudem ocupações e repressões estatais. A vontade de sujeição oscila em obedecer aos operadores do tráfico e fazer parcerias às operações de guerra, forças armadas e todo o aparato policial da razão governamental de Estado.
Nos morros desprovidos de serviços públicos e políticas sociais efetivas, parcelas de moradores começam a aceitar noções equivocadas defendidas pelo engodo jornalístico de que o Estado brasileiro se faz presente na Vila Cruzeiro e no Complexo do Alemão, vindo a existir simplesmente como uma recuperação do tal "monopólio da violência". A falaciosa exortação da "retomada das favelas pelo Estado" desconsidera a historicidade do processo de favelização e segregação urbana socioespacial, oriundo das desigualdades que o Estado sempre ignorou. A imprensa ressalta apenas os braços armados do Estado em espaços segregados. Desse modo, é comum se deparar com posições que associam a miséria e a pobreza às questões criminais, consenso feito pelas camadas mais conservadoras da sociedade, principalmente as que criminalizam os pobres culpabilizando-os por seus sentimentos de medo e insegurança.
As medidas emergenciais são acionadas a posteriori de serem reconhecidos os "fracassos" e limites de longa duração do poder soberano no combate à criminalidade. As prisões colocadas como sistemas "falidos" corroboram em seus próprios disfuncionamentos a gestão de novos ilegalismos que desdobram em encarceramentos massivos.
As convicções de almas governadas vigentes nas cobranças por punições exemplares e direitos securitários, especialistas funcionalizados e intelectuais orgânicos corporativistas estabelecem dicotomias maniqueístas ao policiamento ao se dirigirem na luta contra a corrupção generalizada. Consideram que as ações violentas, abusos, práticas de extermínio, execuções sumárias, torturas sistemáticas e parcerias com o tráfico são meramente "problemas de estruturas" e reformismos institucionais. Reduzem a questão para um problema de nivelamento moral, desconsiderando os processos de racionalização da prática governamental que estabelece metodologias para uma economia política governar e investir de um modo particular em torno da segurança e diminuindo outros custos sociais, e cabe ressaltar os jogos de subjetivação fascista nas tecnologias de si produzidas pelo massmedia capitalístico ao qual orienta as escolhas políticas da polícia numa campanha de escalada bélica e face ao controle militarizado das áreas pobres.
A exceção alçada à condição de dispositivo de governo de todas as democracias para garantir o paradigma de segurança e continuidade do Estado e a seletividade biológica do poder executivo é comemorada como uma promessa de tranquilidade. Assim, alicia as clientelas que "aprendem" a sobreviver em espaços fechados, cercados de proteção e constantemente vigiados ou como objetos de filantropia de programas público-privados de ONGs, mídias, empresas e normas participativas ao arsenal bélico em nome do sonho pela paz. Contudo, proliferam-se desejos de vingança por parte daqueles que favorecem a truculência e reclamam por pena de morte ao atacar os direitos humanos e suas garantias constitucionais, fixando os estigmas da inumanidade dos "bandidos" e "traficantes fugitivos".
Os espectadores de filmes como o "Tropa de Elite 1 e 2", que fazem uso do paradigma bélico nas questões de segurança pública, lotam as salas de cinemas deleitando-se com as cenas de tortura e o espetáculo da execução ao glorificarem a truculência policial como um ato heroico, enquanto seus diretores, sociólogos, ex-policiais, consultorias e diletantes universitários compõem os setores que se promovem com o mercado da violência e do controle do crime, gratificando sucessos na comercialização da cidade apresentada como um território de guerra. Essas produções, apesar de se engajarem como "bem intencionadas", contribuem para a construção de subjetividades de uma "cultura punitiva", demandas que entranham o dogma da pena a partir do senso comum criminológico ao qual favorece a "eficiência exterminista" das operações de segurança. Entre as oscilações de abertura democrática e permanências autoritárias, as resistências se inibem em meio às adesões pelas punitividades. Contingentes celebram o autoritarismo que antes era visto como inimigo, hoje como "heróis da libertação".
A obrigação de todos a cumprirem um contrato social mofado se transforma em cooptação com as invasões militares, sustentam a figura e a necessidade nostálgica pelos tentáculos de Leviatã, que no momento teme a “contaminação” de seu exército. Os poderosos chefes do comércio de drogas ilícitas continuam ilesos e intocados, pois usufruem de proteção jurídica, respaldo político e influências legalmente constituídas, enquanto os corpos de seus agentes, a maioria compostos de jovens que habitam nas periferias ao qual tocam o varejo da droga e ocupam pequenos, médios ou grandes cargos na hierarquia local do tráfico, são eminentemente brutalizados tornando-se descartáveis e vidas matáveis na vaga classificação da “guerra contra o tráfico” e por aqueles que se beneficiam e administram a economia proibicionista do mercado multinacional e conexionista das drogas em correlação com os lucros concentrados pelas indústrias armamentistas, a lógica formal do Estado articulada nas redes de ilícitos do capitalismo criminal-informal. Neste sentido, superlotam os sistemas penitenciários ao criminalizar grupos historicamente marginalizados. O massacre sistemático e o aumento da população carcerária configuram-se em fonte de renda e do capital financeiro dos que buscam preservar o patrimônio privado dos sistemas prisionais, sobretudo os de segurança máxima, e continuidade de programas governamentais, que também favorecem os interesses da grande imprensa e do oportunismo eleitoral ao qual fazem vistas grossas para as questões de fundo.
Para isso, iniciativas privadas e públicas investem milhões em Programas de Aceleração do Crescimento em que se utiliza da domesticação e disciplina social para formar consensos e colaborações nas “comunidades”. O combate e expulsão de “traficantes” e suas sócias milícias administradas – escondendo seus rendimentos na aplicação do poder – atuam na batalha estratégica de implementação do PAC em espaços georreferenciados como “áreas de vulnerabilidade e de risco”. Neste panorama, poucos se opuseram aos excessos de ações policiais, muitos ainda depositam esperanças nas UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) – e suas estratégias de geopolítica urbana que atende aos serviços de especulação imobiliária e capital turístico – e no aumento salarial para policiais, apostando em treinamentos no embate aos milicianos e restauração da "ordem contra o caos". As chamadas lideranças comunitárias assumem o papel de condutores de consciências capturadas.
As políticas públicas no Rio estão cada vez mais a favor do poder privatizado das franquias, dos produtos industrializados e o governo privado da coisa pública pelo capital. Com as justificativas de levar melhorias com as obras dos Jogos Olímpicos e Copa do Mundo aos espaços desatendidos, o que se constata são os variáveis empreendedorismos ordenando o controle de contenção truculenta da pobreza pelo Estado Policial, e as UPPs são os deslocamentos dessa estratégia de policização da vida cotidiana e da "reconquista" militar nas comunidades pobres. A geograficidade dessas unidades é difundida pelas agências publicitárias como um marketing perverso para a realização de megaeventos de rock e esportivos.
Por isso se faz perceber o consentimento massivo às delações ou à vigilância policial que se intervém e visa penetrar em todos os elementos da vida cotidiana, de modo a evitar transparecer como arbitrariedade e excesso, mas mantendo o "controle utilizado com todos os meios necessários" como uma garantia e solicitude de um “pacto de seguridade” do Estado com a população governada pela modalidade do poder pastoral.
Apesar de todos os ufanismos punitivos, da ladainha imediatista da imprensa marrom espetacularizada, sabe-se que o tráfico não cessará. A idealização de um modelo pacificador, a corrida de preparar os cenários de 2014/2016 limpos, planejados e seguros e o amor que rodeia as populações que "só querem ser felizes" num campo favelizado protegido pelas muralhas da "força de lei" e manutenção da ordem, projetos higienistas de apartheid social, ecopolíticas homeostáticas e instalação das tecnologias de monitoramento a fim de identificar áreas e grupos como perigosos e difundir quimeras de "felicidade" com base na vigilância e controle a céu aberto, irão se defrontar com uma nova redefinição territorial do tráfico, divisão de territórios entre as extensões de polícia e tráfico (sem a polaridade que muitos costumam acreditar em nome de suas simplificações dramáticas), novos cargos distribuídos às milícias, reorganização de estratégias e atuações, assim como são moduladas pelas facções em práticas paulistas. A governamentalidade do Primeiro Comando da Capital talvez sirva de referência para a reorganização e fluxo do tráfico no Rio de Janeiro, redimensionando o modelo que parecia ser territorializado e sedentário.
A crença no War on Drugs e ondas de criminalização pelas agências do sistema penal reforçam os dispositivos genocidas e as fantasmagorias moralizadoras, a fraude midiática apenas trata com opacidade as novas crises e mortes que irão surgir, não há escatologias na lógica da guerra e na rede maquínica e microfísica do lucrativo mercado internacional das drogas e negociações desviantes de armas, não ocorre da maneira como anunciam os meios de comunicação com suas retóricas triunfalistas e imagens espetaculares e cinematográficas.
Outros setores mais solipsistas procuram entender os conflitos sob a ótica apressada que tende a monumentalizar um "acontecimento maior", totalmente presentificado numa amnésia histórica entusiasmada em aclamar uma suposta "vitória" ao crime organizado ao qual mitifica a narrativa do agora encoberto de ineditismos ao produzir o esquecimento do passado. Tais presentificações chegam a se vangloriar das ocupações "sem banho de sangue", como se as mortes ocorridas fossem algo desprezíveis e irrelevantes pela grandiosidade do evento em curso, reativando a seletividade de uma violência sem luto.
Permanências da militarização nas zonas indeterminadas do estado de exceção – que se exerce como regra no interior da representatividade de um Estado democrático de direito – e sua thanatopolítica; ampliação de disputas mercadológicas e programas governamentais; a busca pela legitimidade da defesa social que fomenta opressão, perseguição, mecanismos assassínios e disposição/exposição de morte; ajudas e solidariedades docilizadas concedidas às instituições cuja única finalidade é preservar a ordem estabelecida; no bojo dos conflitos civis que passam a ser naturalizados ou virtualizados por simulações e simulacros da indústria de entretenimento tecnológico (com suas pretensões de "hiperrealidades" aos quais ressignificam signos flutuantes em estetizações triviais e mediatizadas), a violência se tornou líquida e os empreendedorismos racionalizam modernizar a guerra por outros meios e aperfeiçoar a eficácia dos regimes liberais e neoliberais que constituem as formas de obediência e renúncia de si mesmo, visando regulamentar e impedir as relações pelas quais criam resistências que possibilitam a coragem de se pensar em ser mais livres. Mas, nem todos esgotaram suas potências, pois onde há poder, há devires que se voltam contra as autoridades, experimentando limiares de intensas desobediências. A cobertura midiática e seus dados estatísticos não mostrarão as forças de recusa, desaprovações e insurreições contra as subordinações construídas para atender projetos de gestão policial e interesses políticos transnacionais.

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